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Fondo Documental Dinámico
sobre la gobernanza de los recursos naturales en el mundo

Caderno de propostas. Políticas fundiárias e reformas agrárias. Parte I. Propostas

Fuentes documentales

Merlet, Michel. Caderno de propostas. Políticas fundiárias e reformas agrárias. Versão em português. Dezembro de 2006. (Baixar o documento em português)

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As propostas seguintes não têm caráter definitivo. Elas são dinâmicas e evoluirão em função do que for trazido, dos comentários, das críticas que serão formuladas sobre o caderno.

Elas também não são apresentadas numa ordem de importância, as prioridades não sendo as mesmas nas diferentes regiões do mundo. Todas são, entretanto, de uma forma o outra, interessantes a considerar na maioria das situações, com nuanças e adaptações caso por caso.

A. Quatro propostas fundamentais

1. Enfatizar a necessidade da reforma agrária em caso de forte desigualdade de acesso à terra

Em todos os países onde a distribuição da terra é muito desigual, convém instituir a reforma agrária como uma política pública necessária e primordial e buscar sistematicamente a melhoria dos processos de reforma agrária, a fim de não perder oportunidades oferecidas por contextos favoráveis à sua implantação.

A reforma agrária fazia parte, entre 1960 e 1980, de políticas que eram freqüentemente apoiadas pelos órgãos de cooperação e as instituições internacionais. Em todas as regiões do mundo nas quais a estrutura agrária era muito polarizada, na América Latina, na Ásia do Sudeste, na África Austral, ela era reconhecida como sendo necessária. Hoje, em parte pelo fato dos limites e do custo das reformas agrárias, freqüentemente conduzidas de forma imperfeita e insuficiente, em parte pelo fato da nítida diminução do peso relativo da população rural em relação à população urbana, a reforma agrária é muitas vezes considerada como não sendo mais de atualidade. Se o Banco Mundial reconhece na teoria em certas publicações que as reformas agrárias são ainda necessárias, os programas que ele e as outras instituições financeiras internacionais ajudam hoje não têm mais o objetivo de transformar profunda e rapidamente a estrutura agrária.

Porém, cada vez que a destribuição da terra é desigual (como, por exemplo, no Brasil, no Zimbabwe, na África do Sul, …), uma intervenção rápida e eficiente impulsionada pelo governo para redistribuir a terra aos pequenos e médios produtores (muitas vezes os mais capacitados a valorizá-la segundo o interesse das maiorias) é mais do que nunca necessária e urgente. A reforma agrária constitui, então, a primeira política pública a ser implantada nas estratégias de luta contra a pobreza. De fato, a grande massa de pobres é constituída por camponeses e antigos camponeses que não dispõem mais de meios suficientes para sua sobrevivência. Os contingentes crescentes de indigentes são alimentados, constantemente, pela ruína do campesinato no mundo. Quando existem grandes extensões de terras usadas de forma extensiva e um grande número de camponeses pobres que não têm acesso à superfícies que lhes permitiriam construir um processo de desenvolvimento sustentável, a primeira medida a ser tomada, antes de qualquer outra, é lhes permitir o acesso à terra e, então, fazer uma reforma agraria.

Mas, as reformas agrárias a ser implantadas devem obrigatoriamente levar em conta as experiências anteriores e não simplesmente repetir os esquemas do passado. Os contextos políticos favoráveis à implantação de reformas agrárias são relativamente pouco freqüentes, já que necessitam de correlações de forças, internas ou externas, capazes de poder enfrentar os interesses dos latifúndios, os quais desempenham, muitas vezes, um papel importante no seio dos grupos no poder. Além disso, estas condições favoráveis, quando existem, são muitas vezes efêmeras. Então, é importante não perder as oportunidades históricas que se apresentam. Daí, a importância de procurar sistematicamente melhorar os processo de reforma agrária, tornando seu impacto de redistribuição fundiária irreversível a curto prazo.

Esta melhoria passa, antes de tudo, por um PAPEL PROTAGONISTA DAS ORGANIZAÇÕES DE PRODUTORES e implica:

  • a melhoria da dinâmica de implantação das políticas de reforma agrária, procurando acumular de forma gradativa os apoios das diferentes camadas sociais, enquanto que, pouco a pouco, enfraquecem os setores hostis à reforma. Trata-se de um ponto essencial sem o qual as transformações abortam rapidamente.

  • uma revisão das relações entre o coletivo e o individual, construindo mecanismos adaptados de gestão social da terra dando, ao mesmo tempo, segurança aos produtores individuais.

    A coletivização da produção, freqüentemente, inibe as mudanças nos sistemas de produção e nas relações de poder. A aceitação implícita da propriedade absoluta como única referência leva a raciocinar em termos de coletivo ou de individual, enquanto que é através de combinações de direitos individuais e de direitos coletivos que podem ser construídos sistemas viáveis. Garantir a posse da terra aos produtores individuais que nascem com a reforma e construir novas modalidades de gestão coletiva, no que diz respeito aos direitos comunitarios sobre essa mesma terra constituem, então, dois processos fundamentais que devemos desenvolver simultaneamente.

  • o preparo, desde o início da implantação da reforma agrária, do « pós reforma agrária », evitando a constituição de um setor reformado afastado da realidade dos demais pequenos produtores.

    A reforma agrária é uma política pública, uma intervenção enérgica do Estado num momento determinado. Todavia, não pode deixar seu futuro depender só da vontade dos sucessivos governos. A criação de um setor reformado, com regras específicas, dependendo em grande parte de intervenções paternalistas por parte do governo e a existência de organizações camponesas específicas do setor reformado levaram, quase sempre, a uma fragilidade extrema das conquistas das transformações agrárias (ver os exemplos da Nicarágua e de Honduras).

    Se ajudas específicas podem ser totalmente justificadas no que diz respeito aos produtores beneficiários da reforma agrária, é implementando, o mais rápido possível, políticas agrícolas comuns ao setor reformado e ao setor de pequenos e médios produtores e, sobretudo, construindo organizações camponesas capazes de gerir de forma coerente as lutas desse diferentes setores, que se pode evitar o desabamento das conquistas da reforma agrária no caso de mudança brusca na relações de forças políticas.

  • a criação de capacidades locais de gestão da terra, sem esperar o fim do processo de reforma

    Atendendo à mesma preocupação, convém, em vez de abstrair completamente o setor reformado do mercado dos direitos sobre a terra, preparar com suficientemente antecedência as evoluções que virão após a reforma agrária. As unidades do setor reformado precisam também de modificações para o acesso à terra. Em vez dessas modificações serem o resultado da regulamentos gerados pelos Institutos de Reforma Agrária, torna-se necessário construir capacidades locais que possam apreender a exercer diversas modalidades de regulação do mercado da terra (inclusive o mercado de locações em certos casos). As organizações camponesas devem conceber, organizar e apreender a conduzir esses modos de regulação, numa articulação crescente com os produtores dos entornos.

  • a articulação da reforma agrária com uma política agrícola que permita o desenvolvimento da produção camponesa

    Trata-se de um ponto essencial. Se a reforma agrária como redistribuição fundiária constitui um primeiro passo essencial, ela somente será bem sucedida se as novas unidades de produção dispuserem de condições econômicas satisfatórias para produzir.

    Vimos que a produção familiar só expressa seu potencial se políticas públicas adequadas lhe permitem consolidar-se e modernizar-se. Isto é particularmente verdadeiro para unidades de produções frágeis que nascem de um processo radical de reforma agrária. A proteção nas fronteiras dos produtos chaves de maneira a evitar a colocação em concorrência com produtores com níveis de produtividade muito mais altos, uma política de mecanização e de modernização que não substitua de imediato a força de trabalho por máquinas, como foi o caso em Taiwan, constituem elementos essenciais sem os quais não será possível colher os frutos da reforma, Outras políticas podem representar um papel complementar importante, tais como uma política de qualidade dos produtos, uma política de compensação para as zonas desfavorecidas, etc..

2. Regular os mercado fundiários e gerar as estruturas fundiárias

Onde as desigualdades fundiárias são menores é necessário implantar « políticas de estruturas » e mecanismos de regulação dos mercados fundiários.

Esta proposta aplica-se aos países que não precisam de uma « reforma agrária » propriamente dita, de uma redistribuição rápida da terra com o auxílio do Estado. Ela é da mesma forma válida para aqueles países que acabam de realizar uma reforma agrária. Nestes dois casos é preciso gerir a evolução das estruturas agrárias de forma e permitir a modernização das unidades camponesas e sabemos que o mercado, sozinho, não garante esse processo.

Chama-se políticas de estruturas, as políticas públicas destinadas a corrigir o funcionamento do mercado fundiário e a permitir que a evolução da estrutura agrária esteja em harmonia com o interesse das maiorias. Tanto quanto a reforma agrária, as políticas de estruturas permitem que a terra preencha a função social a ela atribuída num determinado momento. Isto implica que os produtores e as instituições públicas entrem num acordo sobre os tipos de unidades agrícolas que é desejável ter em cada região, em termo de tamanho e de sistemas de produção, a fim de criar as condições para que um número tão grande quanto possível delas seja viável economicamente e possa modernizar-se progressivamente.

Aqui também, como para as políticas de reforma agrária, a existência de ORGANIZAÇÕES CAMPONESAS FORTES, DEMOCRÁTICAS E REPRESENTATIVAS das camadas majoritárias de produtores é absolutamente essencial (ver, por exemplo, as experiências dos Países Baixos, da Dinamarca, de Taiwan, da França)

O leque de medidas possíveis é amplo, mas algumas são dispendiosas e estão fora do alcance dos países pobres. Assinalemos a importância daquelas que podem ser implantadas praticamente em qualquer lugar:

  • Medidas fiscais que taxam a grande propriedade, o uso excessivamente extensivo do solo e sua utilização degradadora dos recursos naturais

  • Medidas de regulação e de melhoria dos mercados fundiários que podem passar por mecanismos de co-gestão do mercado fundiário entre o Estado e as organizações de produtores (um pouco como as SAFER na França), bancos de terra, facilidades de crédito fundiário para aqueles que não têm acesso a um financiamento de longo prazo para comprar terra. Essas intervenções são complexas. Elas exigem um acompanhamento permanente do mercado fundiário e a possibilidades de adaptar, se necessário, os dispositivos.

  • Políticas que facilitem o remembramento das parcelas de terra dos camponeses, quando a dispersão extrema das mesmas bloqueia a modernização.

Mas, além dessas medidas visando adaptar os sistemas fundiários existentes em regime de pequena propriedade, importa também garantir o direito dos produtores em trabalhar a terra, independentemente do direito de propriedade. É, com efeito, uma das únicas formas para resolver os problemas postos pelas heranças igualitárias entre gerações próprias da economia camponesa.

  • a garantia dos direitos dos arendatários, parceiros ou daqueles que têm direito sobre a terra, mas não são proprietários constitui uma política fundiária muito interessante e que se revelou eficiente em certos contextos. Ela passa, claro, por uma legislação adequada, mas esta não é suficiente em nenhum momento. Essas políticas só poderão ser efetivas se existir organizações camponesas fortes capazes de lutar para que tais leis sejam votadas e para exigir sua aplicação. Será preciso, à vezes, estabelecer jurisdições específicas para que os camponeses possam ter acesso à justiça sobre temas tão delicados.

  • a criação de instâncias específicas que sejam proprietárias da terra (e cujo estatuto legal pode assumir diversas formas: sociedades de acionistas, agrupamentos fundiários, cooperativas, …) e que coloquem à disposição dos produtores as terras que eles precisam sob forma de locação. Pode ser um caminho interessante sob condição, é claro, que os direitos dos produtores sejam garantidos e que esses produtores correspondam às formas de produção que se deseja promover.

3. Descentralizar em grande parte os mecanismos de administração dos direitos individuais sobre a terra

Os programas da cooperação internacional destinam centenas de milhões de dólares à constituição de sistemas nacionais de cadastro e de registro da propriedade, afirmando que a única maneira de garantir os direitos dos produtores é dando-lhes títulos de propriedade, e que estes permitirão reativar os investimentos e poderão ser usados como garantia para obter créditos.

A maior parte destes esforços é inútil no que diz respeito aos pequenos produtores, pelo custo das operações e da inexistência de mecanismos locais de atualização dos direitos. Em alguns anos, esses registros e cadastros não representam mais a realidade dos direitos dos pequenos produtores.

Mas, tem ainda problemas mais sérios. Vimos que freqüentemente os processos de reconhecimento dos direitos são calcados no sistema Torrens, concebido na época colonial, e que numerosos beneficiários podem então ficar espoliados no momento do estabelecimento dos Cadastros e dos Registros. A implantação de sistemas adaptados às situações de muitos países em desenvolvimento, como os planos fundiários na África do Oeste, por exemplo, tenta romper com este sistema de matrícula vertical, mas choca-se com um certo número de dificuldades e as resistências são múltiplas.

Então, convém combater com força a idéia de que a garantia dos direitos só passa pela aquisição da propriedade, mais ainda, o fato que a propriedade do solo seja absoluta.

A descentralização dos mecanismos de administração dos direitos no âmbito das municipalidades, de organizações de produtores, de organizações indígenas e tradicionais costumeiras, ou de instâncias adequadas constitui uma prioridade e uma condição para que os sistemas de cadastros e de registros em nível nacional sejam viáveis e que os direitos de todos os usuários possam ser atualizados a um custo razoável.

É a participação e a existência de testemunhas cuja probidade é reconhecida em nível local e não a precisão de um sistema de localização por satélite que pode estabelecer, em última instância, onde se encontram os limites das áreas. É preciso, para isso, instituições locais reconhecidas que possam validar os direitos de cada um.

Para evitar recorrer à justiça formal, sempre lenta e dispendiosa, muitas vezes ineficiente e corrompida, é preciso combinar essas funções de pura administração dos direitos com outras funções de resolução de conflitos e de mediação, adaptadas às exigências atuais que podem tomar formas institucionais diferentes.

Em certas situações, segundo modalidades que devem ser adaptadas à cada caso, pode ser extremamente útil proceder, em primeiro lugar, a uma « matricula » dos direitos das instâncias coletivas e não só os dos indivíduos. Todavia, estes direitos não se reduzem, in fine, a direitos de propriedade no sentido occidental da palavra, o que nos leva à quarta proposta.

4. Construir instancias de gestão dos recursos comuns na escala do território

Além dos direitos sobre a terra no sentido estrito, trata-se de poder gerar um conjunto de bens comuns e poder levar em conta direitos múltiplos num mesmo espaço. Não mais do que a reforma agrária, a gestão sustentável dos recursos naturais (madeira, água, biodiversidade) não pode ser garantida unicamente de maneira descendente a partir das instituições do Estado.

A construção dessas instâncias participativas de gestão dos recursos dos diferentes territórios deveria então, constituir um dos eixos de trabalho para os próximos anos e isso não somente nos territórios ditos indígenas, mas em todo lugar.

É um desafio indissociável hoje da implantação de políticas fundiárias. Necessita, inclusive, de mecanismos da mesma natureza que aqueles que evocamos nos pontos anteriores, melhor capacidade da sociedade em estabelecer e aplicar as políticas de gestão dos recursos comuns.

B. Como fazer para que estas propostas sejam aplicadas ?

Para que estas propostas possam tornar-se efetivas, um certo número de ações é necessária. Não se trata de receitas: não se faz uma « boa » reforma agrária só porque « sabe-se » como fazer. Trata-se de mecanismos e estratégias que, a termo, pretendem mudar as relações das forças presentes. Desde então, as organizações camponesas estão de imediato no centro destas propostas, que apresentaremos em 5 pontos.

1. Constituir redes de troca de experiências entre organizações camponesas

A constituição de redes de troca de experiências entre organizações camponesas e indígenas, com um apoio pontual de pesquisadores e de especialistas, constitui uma necessidade para que cada um possa se conscientizar das múltiplas facetas dos problemas e para poder melhor tirar os ensinamentos da experiência acumulada em nível mundial. Trata-se, de certo modo, de globalizar os saberes com o objetivo de poder, depois, melhor globalizar as lutas.

2. Formação e pesquisa - ação sobre as questões fundiárias com os produtores e os demais habitantes rurais

É conveniente implantar programas de educação e de formação dos produtores e dos demais moradores rurais sobre as questões fundiárias e criar as condições para que processos de pesquisa ação sobre esse tema ajudem a orientar as lutas camponesas sobre os novos desafios e elaborar novas políticas públicas melhor adaptadas.

  • A formação dos produtores e dos habitantes rurais sobre a importância estratégica das questões fundiárias em relação ao futuro das sociedades no seu conjunto constitui uma necessidade real, atualmente necessária para permitir que esses atores se conscientizem sobre os desafios de suas lutas.

  • A concepção de métodos de pesquisa ação sobre esse tema, sempre políticamente delicado, constitui uma etapa incontornável nesse processo. As lutas dos camponeses, dos indígenas, dos rurais (e de outros setores aliados) devem, para conseguir convencer da possibilidade de realizar os projetos alternativos evocados, poder apoiar-se em projetos pilotos, em experiências que permitam fazer evoluir as relações de força e construir em grande escala as diferentes formas necessárias de estruturação social (capital social)

  • Por conseqüência, os métodos de lutas deverão evoluir já que não se trata mais, doravante, de contentar-se a exigir do Estado, mas juntos poder construir alternativas.

3. Realizar atividades de lobby para influenciar os financiadores e os dirigentes

Um trabalho de lobby sobre as instituições financeiras internacionais, as cooperações bilaterais e multilaterais é necessário para obter espaços e recursos propícios à inovação e à implantação de políticas diferentes daquelas atualmente promovidas.

4. Construir novas alianças

A construção de alianças fora do meio camponês e indígena sobre temas do interesse direto das populações urbanas, muitas vezes, majoritárias hoje em muitos países (qualidade da alimentação, meio ambiente, gestão do meio rural, ligação entre pobreza urbana e a remuneração precária do trabalho camponês) parece hoje indispensável para fazer avançar as proposições anteriores sobre a gestão da estrutura fundiária.

De fato, estas propostas não dizem respeito só aos camponeses e aos rurais, mas à sociedade humana no seu conjunto, na procura de um desenvolvimento sustentável.

5. Fazer a associação entre a questão fundiária e a luta contra a pobreza e as desigualdades

A inserção da questão fundiária nas agendas de discussão dos problemas planetários deve fazer-se sublinhando as ligações fundamentais com as causas da pobreza no mundo.

Sem reforma agrária, sem políticas agrícolas favoráveis à pequena produção camponesa, não será possível nem erradicar a pobreza, nem chegar a uma gestão sustentável dos recursos naturais do planeta.